quinta-feira, 25 de novembro de 2010

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Os artistas nacionais, no século XIX, sob os pressupostos da estética romântica, buscavam no índio inspiração para a composição de suas poesias e obliquamente propalavam certas ideologias pertinentes à cultura indígena. A literatura assim concebida traduz o discurso americanista de veiculação de temas relacionados à questão étnica e identitária do Brasil oitocentista. Poderíamos ainda remontar a valorização literária do índio americano ao século XVIII, ao Caramuru de Santa Rita Durão e ao Uraguai de Basílio da Gama, porém, de acordo com Maria Cecília de Moraes Pinto em A vida selvagem (1995), ―desses primeiros poemas [Caramuru e Uraguai] até as manifestações românticas, algo se transforma: o elemento autóctone vem para o primeiro plano, exaltado, admirado, convertido em símbolo.
A representação poética da cor local marcada especialmente pela retratação do indígena como registro de nacionalidade literária ia ao encontro do movimento romântico europeu, especialmente francês.
Da combinação dos fatores internos à ―demanda externa surge a visão edênica da terra americana e do nativo. A América constitui-se assim em assunto poético privilegiado, atuando quase sempre como fonte inspiradora para os literatos ávidos em instituir uma expressão literária que pudesse simbolizar o povo americano. Comentando a obra de José de Alencar, Pinto sintetiza o propósito geral da poesia de temática indianista: ―Costumes, lendas, fala seriam estruturados de modo a atingir um objetivo literário: reconstruir o passado e apresentá-lo à posteridade. O pensamento selvagem transforma-se em matéria-prima, bela em si e rica em possibilidades
De acordo com Brito Broca, ―O Teócrito da América só apareceria por volta de 1823, com os primeiros romances indianistas de Fenimore Cooper (1983, p. 133-134). A curiosidade do Velho Mundo pelo universo ameríndio manifestar-se-ia ―No sentido do exótico. Cansados dos Hemingway, dos Steibeck e dos Caldwell, os leitores começam a inclinar-se para o México, a Venezuela, as Antilhas, as selvas do Brasil. (1983, p. 132). A leitura dos poemas de temática indianista recolhidos nas Americanas, nos faz perceber que a representação machadiana do índio não condiz exatamente com a expectativa dos leitores estrangeiros, cujas experiências prendiam-se à estética dos poemas indianistas caracterizados pelo exotismo e pela idealização da América e do silvícola. Há nos versos machadianos, além de descrições onde são focalizadas as exterioridades da vida indígena, certa preocupação em recuperar imagens humanizadas do índio e, sobretudo, retratar a dura realidade dos habitantes do aclamado Paraíso.
Maria José de Queiroz em uma apreciação sobre o indianismo hispano-americano estabeleceu a diferença entre essas duas práticas de discurso poético. Segundo Queiroz, o termo indianismo relaciona-se à abordagem literária baseada na heroicização do nativo, enquanto o vocábulo indigenismo divulga a realidade do índio americano consciente de sua condição de criatura explorada, desterritorializada e vítima dos modos de aculturalização impostos pelas culturas estrangeiras.
Delineando as modalidades culturais do discurso de temática indigenista na Hispano-América, Silvina Carrizo completa o estudo de Queiroz ao apontar quatro concepções de indigenismo: o evangélico, durante a colônia; o indianismo patriarcal, observado no período romântico e reconhecido na ação paternalista dos finais do século XIX, cujos anos anunciam também o começo do mesticismo, movimento de mestiços letrados, propaladores do indigenismo mestiço; e o discurso do indigenismo crioulo. Segundo a autora, o discurso indigenista verificado no conjunto de textos do século XIX revelaria ―[...] pela primeira vez e de forma oblíqua – pois não é o eixo central –, o aparecimento de certas características tais como: a procura pelo conhecimento do indígena e a denúncia do estado a que é submetido, a defesa de seus direitos e a questão dos modos de incorporação com base no processo de evangelização.
Nas Americanas, encontramos relatos de atos heróicos do índio brasileiro, formando o espetáculo do desconhecido, apoiando-se em exterioridades e suprindo, assim, a expectativa européia, mas também verificamos em vários poemas a denúncia da exploração vivenciada pelo índio e sobretudo versos que desmitificam a imagem de símbolo/herói nacional propagada pela poesia indianista ao trazerem à cena o homem americano com suas virtudes e fraquezas. Talvez por isso, a recepção pouco entusiasmada ao volume sob as penas de resenhistas contemporâneos ao poeta.
O patriotismo de Machado de Assis foi ardente e ele celebrou em seus versos tanto a índia como a humilde mucama seduzida pelo senhor moço, introduziu em suas Americanas termos tupis, procurou escrever à brasileira e não à portuguesa... Mas seu patriotismo soube, com razão, ver um perigo no gosto de seus predecessores pelas paisagens exóticas. (BASTIDE, 2006, p. 420)
O aparato da pesquisa linguística e antropológica, principalmente os termos e costumes indígenas, traduzido pelas vinte e oito notas adicionadas ao final do volume, possibilitou a Machado de Assis a criação de imagens históricas do Brasil indígena. Os poemas ―Niâni e ―Potira baseiam-se, como registrou o poeta, em episódios retirados de textos da crônica histórica brasileira, de Simão de Vasconcelos e Rodrigues Prado, respectivamente. Os usos de textos como esses indicam também o apuro da investigação realizada por Machado de Assis. Habitat, crenças e sobretudo os processos de aculturalização aos quais o índio foi submetido são temas das Americanas. Sendo assim, a partir de dois poemas incluídos nessa coletânea - ―Potira e ―Niâni - buscaremos demonstrar neste artigo a representação poética da figura e tradição indígenas na poesia de Machado de Assis, assim como as consequências oriundas do contato entre o índio e o estrangeiro para a cultura do nativo.

Como se sabe, a história da nação dos Tamoios foi poetizada por Gonçalves de Magalhães em A confederação dos tamoios (1856). A epopéia narra a resistência dos índios tamoios, aliados aos huguenotes da França Antártica, ao invasor português. A revolta supostamente teria ocorrido no século XVIi por conta do assassinato de Comocim, morto ao defender sua irmã Iguaçu, ameaçada por alguns colonos. Na epopéia de Magalhães os índios são heroicizados assim como Anagê nos versos do canto III de ―Potira – Herói lhe chamam / Quantos os hão visto no fervor da guerra –, ainda que o narrador machadiano esteja apenas reproduzindo a opinião de outras vozes. No trecho da crônica de Vasconcellos, o capitão, chefe indígena, qualificado de ―bárbaro, usa de crueldade contra a índia cativa. A violência, apesar da pseudo-justificativa, aparece verticalizada, isto é, de grupo para grupo, ou melhor, de tribo para tribo.

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